A interação entre a ética e a prática médica foi o tema central do 2º Congresso de Medicina do Cremesp — realizado nos dias 24, 25 e 26 de maio, no Hotel Grand Villagio, em São Paulo —, que abordou temas relevantes para o dia a dia dos profissionais de Medicina. Além de palestras, foram discutidos casos reais de denúncias recebidas pelo Conselho, com troca de nomes, para exemplificar o que deve ser evitado pelo médico para prevenir infrações éticas. O evento apresentou, ainda, painéis e discussões sobre a lei do Ato Médico e as prerrogativas da Medicina, a nova resolução de publicidade médica, honorários, pejotização da profissão e Residência Médica; além da realização de julgamentos simulados. O evento contou com um total de 630 participantes.
No primeiro dia, o congresso contou com palestras do senador astronauta Marcos Pontes (PL-SP) e do jurista, escritor e professor emérito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ives Gandra Martins, entre outros.
Defesa da Medicina
O senador, que tem uma filha médica, mostrou-se preocupado com a abertura sem critérios de novos cursos de Medicina. “Lógico que queremos ter mais médicos no Brasil, o que seria muito bom, mas o profissional deve ter uma ótima qualidade porque, literalmente, tem a nossa vida em suas mãos”, destacou. Ele também manifestou preocupação com a invasão das competências médicas e citou o recente decreto 11.994/24, que altera a estrutura e o funcionamento da Comissão Nacional de Residência Médica, possibilitando a indicação de não médicos ao órgão. “Devemos ter profissionais de Medicina nesta Comissão porque é necessário entender do que está se falando ali”, defendeu. “Estamos tentando revogar esse decreto, para voltar ao que era antes”, revelou.
Pontes contou sua história de vida, desde a infância modesta em Bauru (SP) aos desafios que se propôs a vencer para ser piloto da Força Aérea Brasileira (FAB) e, posteriormente, astronauta da Nasa, agência espacial dos Estados Unidos. Em 2006, ele foi o primeiro brasileiro e sul-americano a participar de uma missão espacial. Entre outros assuntos, também falou sobre a ascensão ao cargo de ministro da Ciência Tecnologia e Inovação, de 2019 a 2022. Ao final da palestra, Pontes foi aplaudido de pé pelos presentes.
Resolução médica
Em sua palestra, o jurista Ives Gandra Martins defendeu a Resolução 2.378/24, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que veda a realização de assistolia fetal quando há possibilidade de sobrevida, acima de 22 semanas de gestação. “Com muita propriedade, aqueles que entendem e conhecem a ciência, sabem perfeitamente que a decisão do CFM, do ponto de vista científico, é inatacável; e do ponto de vista jurídico, inquestionável”, afirmou Gandra Martins. De acordo com ele, quando há viabilidade de vida extrauterina após 22 duas semanas, esta deve ser mantida.
O jurista também fez críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), por considerar que a instituição está exercendo um “poder legislativo auto-outorgado”, extrapolando seu papel constitucional. “Temos inúmeras demonstrações de interpretações que não correspondem ao que está escrito na Constituição, feitas pelo Supremo sobre o Congresso Nacional”, afirmou ele. “O argumento de que 'se eles (ministros do STF) recebem o pedido judicial estão obrigados a decidir' leva a uma insegurança jurídica máxima, na medida em que todos que são derrotados em votações no Congresso Nacional recorrem ao Supremo, transformando-se, em última análise, numa terceira instância legislativa”, concluiu o jurista.
Homenagens
Durante a solenidade de abertura do Congresso, na noite do dia 24 de maio, o Cremesp prestou homenagens a personalidades da Medicina do Estado de São Paulo, pelos relevantes serviços prestados à saúde e à comunidade. Os homenageados foram: Eleuses Vieira de Paiva, secretário estadual da Saúde; David Uip, ex-secretário estadual da Saúde e professor das faculdades de Medicina do ABC e da Universidade de São Paulo (FMUSP); William Carlos Nahas, professor da FMUSP e diretor do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp); Claudio Luiz Lottenberg, presidente do Conselho do Hospital Israelita Albert Einstein; Fernando Ganem, diretor geral do Hospital Sírio Libanês; além de Angelita Habr-Gama, professora emérita da FMUSP; e Miguel Srougi, professor da FMUSP, que não puderam comparecer.
A diretora 1ª secretária do Cremesp, Irene Abramovich, recebeu uma homenagem surpresa especial, das mãos do presidente da instituição, Angelo Vattimo, por sua importante atuação em prol da Medicina. A mesa de trabalhos também contou com a presença do presidente da Associação Paulista de Medicina (APM), Antonio José Gonçalves.
Ato Médico
O Movimento de Acompanhamento do Ato Médico (MAAC) foi o foco da palestra do procurador jurídico do Cremesp, Carlos Magno Michaelis Junior, no Fórum Prerrogativas Médicas, realizado no início da noite de sexta-feira. Ele apresentou um panorama da Comissão de Prerrogativas Médicas, desde a sua criação pelo Cremesp ao seu aprimoramento, abordando também alguns desdobramentos do processo. “Quando o Conselho idealizou a comissão, não tínhamos a dimensão que ela iria tomar”, revelou. Para ele, a primeira surpresa foi que, junto com as prerrogativas, chegaram também as questões de honorários médicos. “Passamos a ter uma noção de como o médico em campo estava premido de saber quais eram seus direitos e prerrogativas. E esse profissional começou a perceber que o Conselho está mais preocupado em prevenir situações em que ele poderia ser julgado por infração ética; e, não menos importante, em socorrê-lo na sua prática cotidiana”, afirmou Michaelis.
Presidida pela 1ª secretária do Cremesp, Irene Abramovich, a mesa contou com a participação dos convidados especiais Marcos da Costa, secretário estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência; e do jurista e professor Fernando Capez. O presidente do Cremesp, Angelo Vattimo foi o moderador; e o 2º secretário, Wagmar Barbosa de Souza, o debatedor da mesa.
Para Costa, “a Medicina e o Direito têm muitas semelhanças”, e de maneira especial em três eixos: o da atualização profissional, o da ética e o das prerrogativas profissionais. “Os três eixos são relevantes, mas o da prerrogativa é aquele que permite o exercício adequado da profissão”, enfatizou da Costa.
De acordo com Capez, “o Cremesp tem tido muita responsabilidade social, legal e ética” em relação à defesa das prerrogativas médicas, que têm sofrido ataques. “ Está na hora de começarmos a discutir questões que estão diretamente ligadas às prerrogativas dos médicos, mas não como um privilégio do médico, e, sim, como condição necessária para proteção da coletividade”, destacou.
Dando sequência ao espaço dado ao MAAC no evento, no dia seguinte, Michaelis relatou aos presentes que o Cremesp já obteve diversas vitórias significativas na Justiça envolvendo invasões ao Ato Médico. Ele explicou que o Conselho tem ingressado na regulamentação da atividade com o poder de autarquia outorgada pela União o que, aos olhos do magistrado, é mais confortável porque se trata de uma instituição subordinada a uma lei ordinária federal. “Com o apoio do CFM, já perfilamos um caminho institucional importante para o médico do Estado de São Paulo, sem causar cisão com outras instituições da Saúde”, disse. Ele citou o exemplo do ofício encaminhado ao Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp) de um dentista que realizava blefaroplastia, atribuição médica. Neste caso, o próprio Crosp respondeu afirmando que já havia aberto uma apuração.
Invasões à Medicina
No Congresso, as especialidades médicas mais invadidas por outras profissões — Ginecologia e Obstetrícia, Otorrinolaringologia, Dermatologia e Cirurgia Plástica e Acupuntura — tiveram espaço para debater com os presentes. Na Ginecologia e Obstetrícia, a ginecologista e diretora das Delegacias do Interior do Cremesp, Christianne Anicet Leite, apresentou um caso sobre laceração de parto decorrente da realização do procedimento em casa. Para Angelo Vattimo, presidente do Cremesp, esta pauta tem sido revestida de ideologia, com muito radicalismo envolvido.
Regina Maria Marquezini Chammes, conselheira responsável pela Câmara Técnica de Otorrinolaringologia, ressaltou a parceria com fonoaudiologistas, farmacêuticos e enfermeiros, mas destacou a invasão de áreas exclusivas do médico, como a rinoplastia realizada por dentistas, diagnósticos e instituição de tratamentos de distúrbios do sono por fisioterapeutas, harmonizações faciais e nasais por dentistas e biomédicos, lavagens auriculares por enfermeiros e terapias milagrosas (como sinusite por óleo de cróton) por “curandeiros”, com prejuízos para o paciente.
Na área de Dermatologia e Cirurgia Plástica, a conselheira Eliandre Palermo apresentou o caso da paciente que buscava cirurgia para correção de blefaroplastia, realizada seis meses antes, por dentista. A mulher procurou quatro médicos, dos quais três eram cirurgiões plásticos, que a orientaram a aguardar ou não quiseram fazer uma cirurgia. O painel também contou com a participação do procurador jurídico do Cremesp, André Luis de Paula Borges, que teceu comentários sobre os aspectos legais e éticos do caso.
Já na especialidade de Acupuntura, a conselheira Eliane Aboud comentou um caso de paciente que deu entrada no hospital com dor no peito em aperto, que sugeria pneumotórax. A paciente relatou que fez uma sessão de acupuntura com profissional não médico dois dias antes. “A Acupuntura é uma área bastante invadida e que pode ter complicações. E têm cursos sendo lançados e promessas falsas. No entanto, é uma área que, na maioria das vezes, funciona como tratamento coadjuvante e que necessita, sim, de diagnóstico nosológico e até de exames para se realizar um tratamento”, ressaltou. O delegado do Cremesp, Luciano Ricardo Curuci de Souza, debatedor do painel, complementou: “com aquela agulha fina, que às vezes pode ter até nove centímetros de profundidade, pode-se atingir alguns órgãos nobres”, alertou, reforçando a importância de sua realização por médico.
Honorários médicos e pejotizacão
Na mesa redonda Honorários Médicos e Pejotizacão, presidida pelo conselheiro e coordenador do Departamento Jurídico do Cremesp, Joaquim Francisco Almeida Claro, com mediação do procurador jurídico do Cremesp, Carlos Magno Michaelis Junior, o palestrante Marcos Loreto, professor de Gestão de Carreira Médica da FMUSP, contextualizou historicamente as formas de remuneração médica, desde a constituição da seguridade social até o surgimento da saúde suplementar, refletindo sobre as razões que levaram à pejotização da categoria.
Segundo Loreto, como não existia regulamentação, foi criada uma padronização da unidade de serviço para fins de reembolso, como o valor do honorário a ser pago para o médico. “É aí que começa uma grande distorção, porque aquilo que deveria ser constituído como valor mínimo para reembolso, passou a ser o teto de remuneração dos profissionais na época. Até que, em 1967, surgem as primeiras tabelas de honorários médicos”, destacou.
O tema foi debatido pelo presidente Angelo Vattimo, que falou sobre dificuldades e incongruências da remuneração médica existentes na saúde complementar – considerando a modalidade de reembolso ou referenciado de seguradoras – e sobre a tendência aparentemente irreversível de pejotização, verticalização e terceirização do serviço médico.
Direito médico
O sigilo das informações, preenchimento de prontuário, relação médico-paciente; laudos e termos de consentimento foram os temas abordados na mesa redonda 11 sobre Direito Médico, coordenada pelo presidente do Cremesp, Angelo Vattimo, e que contou com palestra do diretor do Núcleo de Perícias Médicas da Capital e Grande São Paulo, Sérgio José Zeri Nunes. “A Medicina e o Direito são duas áreas fundamentais, que resguardam os grandes valores da humanidade. A liberdade, a integridade física e a saúde são garantidas por estes dois pilares, que são a Medicina e o Direito”, afirmou Zeri Nunes.
O conselheiro corregedor do Cremesp, Rodrigo Lancelote Alberto, apresentou um caso envolvendo três médicos, em que houve atendimento e realização de procedimento entre colegas, sem o devido preenchimento de prontuário, entre outros documentos.
Pelo Cremesp, também participaram da mesa, a diretora 1ª secretária, Irene Abramovich, e o procurador jurídico, Carlos Magno Michaelis Junior, que discorreram sobre as implicações éticas e legais do caso.
Atestado de óbito
Um importante documento médico, o atestado de óbito, foi alvo de uma mesa redonda à parte no evento. Na palestra de Eduardo Caetano Albino da Silva, médico patologista, presidida pelo conselheiro e também patologista Marcus de Medeiros Matsushita, ficou evidenciada a necessidade de haver declaração em todos os óbitos, assim como os devidos encaminhamentos nos casos de causas naturais ou externas.
Um dos casos em discussão demonstrou que o fornecimento da declaração de óbito é obrigatório após constatação pela Polícia de que não houve morte violenta. Também ficou evidenciado que, em caso de paciente internado, o médico deve analisar se houve causas associadas que culminaram no óbito.
Publicidade Médica
Diante da nova resolução do CFM sobre Publicidade Médica, o Congresso trouxe uma palestra esclarecedora com o procurador jurídico do Cremesp, Carlos Magno Michaelis Junior, que comentou o novo contexto regulatório na divulgação de publicidade médica nas redes sociais, com as diretrizes estabelecidas pela Resolução nº 2.336/2023 do Conselho Federal de Medicina.
Durante o debate, que contou com a participação do presidente AngeloVattimo, e do diretor 2º tesoureiro, Daniel Kishi, tendo como moderador o conselheiro Roberto Rodrigues Junior, foram discutidos diversos aspectos da nova normativa. Entre eles, os que se referem a publicações de “antes e depois”, postagens com celebridades, divulgação de medicamentos e procedimentos, entre outros artigos.
“Apesar da flexibilização, as postagens nas redes continuam a ser passíveis de processos ético-profissionais, caso firam a nova regulamentação”, alertou Vattimo. “O que temos visto é que os médicos continuam a ser processados porque não atendem o que a resolução determina. Mas já houve uma melhora”, afirmou.
Residência Médica
Estimativas indicam que o Brasil contará com um milhão de médicos, em 2035, se persistir a tendência de abertura desenfreada de escolas médicas. A qualidade dos futuros profissionais – e seu interesse por Residência Médica – não acompanhou esse movimento crescente. Ao contrário, vê-se o sucateamento da remuneração dos profissionais e desconfiança generalizada em relação a estes, conforme abordado pelos palestrantes da mesa sobre essa modalidade de formação, presidida por Joaquim Francisco de Almeida Claro, coordenador do departamento jurídico do Cremesp.
As vagas de Residência Médica surgem de maneira desbalanceada, como contou Marcos Loreto, professor de pós-graduação da Santa Casa de São Paulo. Há disputa acirrada em certas instituições, enquanto sobram 31% de vagas de R1, em outras. Como resultado da falta de formação, médicos sem experiência e nem Residência vão para a “porta” do pronto-socorro, sob o risco de prejudicar o paciente e cometer infrações éticas. “Precisamos de generalistas bem formados no SUS”, enfatizou Newton Kara José Júnior, professor universitário e conselheiro do Cremesp. “Uma coisa é ensinarmos nossos alunos. E outra é que eles consigam assimilar o conhecimento”, opinou Kara. A sessão contou ainda com participação de Flávio Eduardo Trigo Rocha, urologista, e Irene Abramovich, diretora 1ª secretária da autarquia, que, na moderação, trouxe uma série de perguntas à plateia relacionadas à participação na Residência Médica e o que esta significou na carreira.
Inteligência Artificial
Também os modernos conceitos de tecnologia aplicada à Medicina estiveram em pauta com o painel Impactos da Inteligência Artificial na Medicina, presidido pelo conselheiro Rodrigo Souto de Carvalho, e que contou com palestra do engenheiro Augusto Salomon. Em sua apresentação, ele discorreu sobre a rápida evolução e crescente utilização de inteligência artificial (IA) nos negócios em todas as áreas do conhecimento.
Segundo Salomon, quem não utilizar a nova tecnologia, vai ficar para trás. “A IA é a mais democrática ferramenta de acesso à informação. Ela já mudou o mundo e vai ajudar a exponenciar o ser humano, a humanidade. Estudem IA todos os dias, pois a velocidade de mudanças é muito grande. Haverá uma disrupção. As profissões vão mudar radicalmente, inclusive a Medicina, e temos de estar nessa onda”, afirmou.
Ao longo da palestra, ele apresentou diversos aplicativos, além de funcionalidades do Chat GPT 4 para a Medicina. Por exemplo, a interpretação de dados de ressonância magnética de forma mais precisa; a indicação de exames e prováveis diagnósticos a partir de uma hipótese; a interpretação de exames e indicação de possíveis tratamentos, entre outros.
“O uso da IA permite acelerar os procedimentos e diminuir possíveis erros de interpretação. Além disso, é possível humanizar e melhorar o atendimento ao paciente por meio da criação de vídeos educativos para divulgar nas redes sociais”, explicou.
Ele finalizou observando que “no final, a clínica é soberana”, pois quem cuida do paciente é o médico. “Ele não vai perder o emprego para a IA, mas, com certeza, oportunidades para o colega que utilizar essa tecnologia.”
Julgamento simulado
Após a realização de um julgamento simulado, com a participação de conselheiros do Cremesp em interação com a plateia, o presidente do Cremesp, Angelo Vattimo, deu por encerrada as atividades do Congresso, com agradecimento a todos os envolvidos: “Finalizamos o 2º Congresso do Cremesp mas amanhã já começamos a preparar o 3º, maior e melhor. E, quem sabe, com a IA nos ajudando”. Para ele, que agradeceu o empenho de todos os envolvidos, o objetivo foi atingido, com audiência significativa e intensa participação dos médicos. “Vamos continuar com ações nesse sentido e contamos com todos os colegas para novas realizações”, disse.
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Fotos: Osmar Bustos e Marina Bonfim (Cremesp) e Larissa Rodrigues e Nathaly Figueroa (MPM Comunicação)